"Os corações dos mais novos também falham"

Aos 65 anos, Almerinda Gonçalves descobriu a insuficiência cardíaca; demorou a aceitar o diagnóstico e o tratamento, mas o médico de família diz ser uma reação recorrente na sua idade, quando os doentes ainda não esperam estas patologias.

Fui ao médico de família/ Pois não me sentia bem/ E ele me perguntou/ O que a senhora tem?/ Eu disse: cansaço/ E o peito apertado/ Ele fez um eletrocardiograma/ E disse logo o resultado.” Não só as rimas pertencem a Almerinda Gonçalves, de 66 anos. A história que tece nestes versos, entre os muitos que frequentemente escreve, é a sua também. Já lá vão anos a redigir quadras em folhas brancas de papel, que guarda cautelosamente em micas transparentes, como se ali protegesse um tesouro. São tantas, que já reclama a dificuldade em chegar àquelas que leu “ao Dr. Jonathan dos Santos”, o médico de família, que, em 2019, lhe ditou o prognóstico, e que Almerinda demorou a aceitar: insuficiência cardíaca (IC).

Foi entre os animais e o campo que nasceu e construiu toda a sua vida, em Celorico de Basto, um concelho marcadamente rural. E conta que já lá vão os anos em que “tinha vagar” para cuidar dos animais de maior porte, as vacas. A certa altura, passou a ter cabras, “um animal mais miúdo”, e depois teve “coelhos, que ainda são mais miúdos”, e muito por força da doença, que uma parte significativa da população do seu concelho também arrisca ter.

“Com uma população envelhecida, há altas probabilidades de encontrarmos aqui um grande número de doentes com IC, que consomem muitos recursos quer ao nível dos cuidados de saúde primários quer ao nível dos cuidados hospitalares. Normalmente, são pessoas que não têm conhecimento da patologia. Sabem o que é a diabetes, o que é a hipertensão, mas a IC é quase desconhecida para esta população.” Quem o afirma e tece o retrato daquela pequena malha rural portuguesa é Jonathan dos Santos, de 33 anos, médico de família no Centro de Saúde de Celorico de Basto, pertencente ao ACES Baixo Tâmega, no qual é presidente do conselho clínico.

“Não pensei que era coração”

Almerinda confirma este retrato. “Nunca me lembraria de que o que sentia era do coração”, como o cansaço que a assaltava quando tinha de “dar uma corridita atrás das cabras”. Diz que já tinha ouvido falar “que ele pode falhar”, tornar-se fraco até em idades mais jovens, como aconteceu com o seu pai, que morreu de morte súbita aos 47 anos, sem se saber ao certo porquê, mas, reforça, “nunca me lembraria que fosse fosse o coração”.

Ao estilo de vida regido pela força e resistência física e ao envelhecimento da população aliam-se os hábitos diários, num caldo de riscos emergentes que faz soar os alarmes ainda em idades férteis e que ajuda a contar a história de Almerinda. O médico Jonathan dos Santos lembra que aquela “é uma região com muito consumo de álcool”, não tivesse aqui lugar a rota do conceituado vinho verde. “A produção de vinho em casa não pode ser desperdiçada, por isso consomem álcool em muita quantidade. E o álcool também é uma das causas importantes para a IC.”

Almerinda não foge à regra, admitindo que tinha por hábito beber um bocadinho ao meio-dia e um bocadinho à noite. “Não só os homens bebem aqui, as mulheres também ajudam.” Agora, vinho já não se atreve a beber e, em outubro do ano passado, teve de vender todos os animais de grande porte, que acabou por trocar por coelhos e galinhas, que estão a ser tratados sobretudo pela filha, com quem vive há oito anos.

“A terapêutica é menos aceite pelos mais joves. As pessoas mais velhas têm mais facilidade em perceber que é um processo normal, quais os riscos que tem e que a IC decorre da idade.”

No final de 2019, uma consulta de rotina para a hipertensão no centro de saúde acabou por desvendar a doença. “Foi por sorte”, diz Jonathan dos Santos. “No final da consulta, a doente disse: “Enfim, tenho andado um pouco cansada”, mas desvalorizou. Foi mais um desabafo que assumia claramente poder ser da idade.” Um desabafo que levou ao estudo de poder ser um caso de insuficiência cardíaca, mas que poderia passar em branco aos olhos do médico e da doente até ao dia em que os sintomas se agravassem.

Com o prognóstico feito, o médico chamou Almerinda para lhe explicar do que poderia acontecer: “As pessoas com IC têm maior probabilidade de morte súbita do que as outras pessoas, mas que o tratamento iria melhorar a qualidade de vida e até aumentar a esperança de vida. A doente, aparentemente, aceitou a situação”, conta, mas, nos meses seguinte, Almerinda Gonçalves recorreu “várias vezes ao centro de saúde e à enfermeira, questionando o porquê do tratamento”. Ou seja, não estava a aceitar a doença.

Almerinda não esperava que aos 66 anos tivesse de somar à hipertensão e à osteoporose uma patologia do coração. “Antes, só tomava medicamentos para a tensão e para o estômago. Tomava dois comprimidos, passei a tomar 11. Quando o doutor me disse que devia ser para toda a vida custou um bocadinho”, confessa.

A cura começa na pergunta

Fazer o doente aceitar a doença pode ser a primeira barreira de um processo que, lembra Almerinda, é de facto para toda a vida, que acontece sobretudo nas idades mais jovens. “A terapêutica é menos aceite pelos mais jovens. As pessoas mais velhas têm mais facilidade em perceber que é um processo normal, os riscos que tem e que a IC decorre da idade”, explica o médico Jonathan dos Santos.

No caso de pessoas em idades mais jovens, “nem sempre ressalvam estas queixas na consulta, a não ser que as questionemos. E, na verdade, o que tem vindo a acontecer é que isto só sobressai quando depois o doente é hospitalizado, com sinais francos e sintomas francos de IC, mas não é aí que queremos chegar. Queremos tratar o doente ainda numa fase inicial, em que têm sinais fracos da patologia”.

Jonathan dos Santos está atualmente a desenvolver um projeto de investigação, no âmbito do programa doutoral da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que envolve doentes com insuficiência cardíaca nos cuidados de saúde primários. E diz ser exatamente por aqui que deve começar o caminho para cada vez mais cedo serem capazes de salvar mais vidas.

“No final da consulta, Almerinda desabafou com o médico que se sentia muito cansada, mas que era da idade. Foi o suficiente para desencadear o estudo de que poderia ser insuficiência cardíaca. E confirmou-se.”

Com o envelhecimento da população a nível nacional e um aumento dos fatores de risco, por força dos hábitos de vida adotados, as estatísticas mostram que a IC está a ganhar terreno a toda a velocidade. Prevê-se que 73% dos doentes com IC possam morrer por morte súbita até 2036 se não forem tomadas mais medidas de prevenção, de acordo com a Sociedade Portuguesa de Cardiologia.

“É necessário haver um papel interventivo por parte do médico de família, ao questionar, ao abordar e ao investigar.” Não deixando que a queixa do doente chegue quase “por sorte”, como exemplifica o caso de Almerinda Gonçalves. É ao “fazer esta investigação antecipada” que, “a médio ou longo prazo, é possível melhorar não só a qualidade de vida do doente, como também reduzir a necessidade de recurso aos cuidados de saúde. Enquanto médicos de família, abordamos uma série de patologias no âmbito de uma só consulta e damos, muitas vezes, prioridade àquilo que trouxe o doente à consulta. O tempo já por si só é limitado e, muitas vezes, direcionamos a nossa consulta para esse motivo.”

No que levou o doente à consulta pode, no entanto, estar a causa ou um sintoma reforçado pela IC ainda não descoberto. Por isso, Jonathan dos Santos propõe que os médicos de família utilizem as consultas de seguimento de doentes com hipertensão e diabetes – que diz ocuparem cerca de um terço dos seus horários – “para questionar o doente se, efetivamente, há ou não há sinais sugestivos de IC”.

Corrida contra o tempo

Numa patologia que definha ao ritmo de uma ampulheta, tudo é uma corrida contra o tempo. Almerinda acabou por aceitar o tratamento. Sobretudo depois de conseguir ver resultados, como a normalização da tensão, que na sua idade, e tendo sido diagnosticada numa fase inicial da doença, ainda podem ser ténues. “Seria sempre muito difícil nós darmos uma terapêutica que melhorasse, francamente, a qualidade de vida”, explica Jonathan dos Santos. Mas o médico de família acredita que, sem tratamento, “pudesse ter já ocorrido um agravamento dos seus sintomas”.

Ainda hoje, com a doença controlada, Almerinda Gonçalves bate o pé à doença que lhe calhou: “Acho que não será muito grave, se Deus quiser”, ri-se. “Agora, estou ainda melhor, tenho o aparelho” – um desfibrilhador que colocou no dia 17 de dezembro.

Além de alertar os profissionais de saúde nos cuidados primários para a urgência de diagnosticar cedo esta doença, Jonathan dos Santos diz que um grande passo a dar é o de sensibilizar cada vez mais a população. “Temos de ter estes dois campos ligados, programas de educação para a comunidade e trabalhar a literacia nesta área.”

Cuidar de um outro coração

Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.