Hospital Santa Marta. Na hora de medir corações, estar perto é estar longe

Histórias de quem trata a insuficiência cardíaca. Numa sala do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, chega uma chamada de Madagáscar. É hora de ver como está o coração desta doente com insuficiência cardíaca. Ao mesmo tempo, outro doente utiliza, a partir da sua casa, um telemóvel, uma app e um relógio para mostrar ao médico o estado do seu coração em tempo real. Um tempo real que é o tempo da telemonitorização e da teleconsulta.

O telefone faz-se ouvir no gabinete 9 do piso 5. “Bom dia. Em que posso ajudar?”. Silêncio. “Deixe-me cá ver.” Susana Covas, técnica superior de diagnóstico e terapêutica no Hospital de Santa Marta fala para Madagáscar, de onde liga uma utente portuguesa há vários anos a ser seguida por esta unidade de saúde por insuficiência cardíaca. Está alarmada, queixa-se de que “anda a cansar-se mais” do que é costume, por isso ligou. Deste lado, Susana tem à sua frente um ecrã que monitoriza em tempo real todos os comportamentos do coração da utente.

Todos os dias, nesta sala, onde se rodeia de vários aparelhos, Susana e outros técnicos verificam o estado do coração de diversos doentes espalhados geograficamente pelo distrito de Lisboa e até pelo mundo. É um dispositivo cardíaco que está implantado junto do coração que permite esta monitorização, quer à distância quer presencialmente (por contacto direto com o dispositivo).

Susana entra ao serviço perto das 08.00 da manhã, para iniciar as consultas de doentes. Nos intervalos, abre o sistema de alertas e verifica se algum deles precisa de ser contactado, no caso de alguns dados terem feito soar os alarmes – como alterações da frequência cardíaca, se o doente reduz a atividade física, a presença de arritmias, o comportamento do sistema nervoso autónomo, ou até mesmo por análise da impedância torácica, o nível de líquido nos pulmões.

Por iniciativa própria, como aconteceu nesta manhã, alguns doentes ligam para o hospital quando se sentem indispostos. “Cada vez mais” o fazem, conta a técnica Susana Covas, que admite ser também um sinal de “medo,” que está a ser cimentado pela própria pandemia de covid-19 nos doentes.

No caso da utente que liga de Madagáscar, por exemplo, a sua ficha regista em tempo real um acréscimo de líquido nos pulmões e um decréscimo na atividade física. “É preciso ver o que se passa”, diz Mário Oliveira, médico coordenador da unidade de arritmologia, pacing e eletrofisiologia do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC), ao qual pertence este hospital, e onde exerce há quase 30 anos.

“Estamos a ganhar muito em termos de qualidade de vida e satisfação do doente, e em termos de custos e de riscos, porque quanto mais vezes for internado, mais riscos tem de ter uma complicação – nomeadamente, por infeção hospitalar”, explica o cardiologista de Santa Marta. © Libia Florentino.

Menos internamentos

Olhar “a conjugação destas variáveis” através do ecrã “permite antecipar que aquele doente pode descompensar daqui a 30 dias” e evitar um internamento, o que é uma vitória face às estatísticas. “Porque um doente com insuficiência cardíaca, sobretudo quando atinge níveis mais graves, tem uma taxa de reinternamento ao sexto mês da ordem dos 50%. Decorridos seis meses, houve um em cada dois doentes que necessitou de ser internado outra vez”, explica o médico.

Se um doente mostra estar em risco de descompensar, através da análise dos dados fornecidos pelo sistema de monitorização, é imediatamente chamado ao hospital. “Estamos a ganhar muito em termos de qualidade de vida e satisfação do doente, e em termos de custos e de riscos, porque quanto mais vezes for internado, mais riscos tem de ter uma complicação – nomeadamente, por infeção hospitalar”, explica o cardiologista de Santa Marta.

Além disso, menos internamentos representam também menos custos para o hospital. “Um internamento por insuficiência cardíaca não é um internamento de um dia, dois ou três.” O processo de compensação do sistema do doente “demora muito tempo”, além de que, “normalmente, são doentes que já têm outras patologias associadas”, pois são maioritariamente idosos, e a medicação tem de ser administrada com toda a cautela.
Mário Oliveira lembra números que comprovam o sucesso da capacidade de se adiantarem às situações de risco, sublinhando ser “curioso” e percetível como os doentes monitorizados à distância “não só têm menos internamentos, como a sua mortalidade global e de causa cardíaca, ao fim de três ou quatro anos de seguimento, pode reduzir quase 50%”.

Um smartphone para ganhar tempo

A tecnologia já mostrou que veio para ficar e acompanhar várias áreas da sociedade. Mas, na medicina, importa “olhar para a tecnologia como uma ferramenta que tem de se adaptar àquilo que é a nossa realidade”.
“Não é adaptar a situação só porque existe aquela tecnologia, mas porque as necessidades clínicas ditam a forma como a tecnologia se vai desenvolvendo.” Quem o diz é Rui Cruz Ferreira, diretor do serviço de cardiologia neste hospital, onde entrou em 1981.

É por acreditar no poder da tecnologia, quando bem utilizada, que conta com vaidade as formas que o seu hospital encontrou para monitorizar os doentes à distância. Além do sistema de alerta instalado na sala onde trabalham técnicos como Susana, há dois anos que o hospital dispõe de um programa de telemonitorização para pessoas com insuficiência cardíaca, através do qual disponibiliza aos doentes dispositivos que permitem seguir o estado do seu coração à distância e evitar que tantas vezes se desloquem ao hospital para uma consulta.

Rui Cruz Ferreira Diretor do Serviço de Cardiologia. © Libia Florentino

São eles um smartphone, que inclui apps desenvolvidas pela equipa hospitalar, um relógio para medir a frequência cardíaca, uma balança para controlar o peso e um esfigmomanómetro  (avaliador da tensão arterial). Os dados ficam reunidos no telemóvel que vai transmitindo centralmente ao hospital todas as informações registadas, enquanto no Hospital de Santa Marta há uma equipa de enfermagem e de médicos que vai colhendo e acompanhando a informação que chega dos dispositivos. Integram este programa doentes que “das duas uma: ou têm capacidade de diferenciação tecnológica, ou seja, que não têm completamente iliteracia, ou que têm apoio familiar”.

Destaquedestaque”A equipa clínica estava convencida de que haveria uma determinada resistência por parte dos doentes quando lhes fosse dito que as consultas poderiam diminuir e que estariam a ser seguidos diariamente à distância”, mas surpreenderam-se.

Tal como o sistema de alerta, este programa permite “acompanhar em tempo real e com periodicidade diária, e com isso evitar algumas deslocações de doentes ao hospital, facilitar a vida e, por outro lado, interferir precocemente quando vemos que a situação está a agravar-se, podendo evitar internamentos”, lembra o cardiologista Rui Cruz Ferreira.

Além disso, a distância pode significar, na maioria dos casos, um maior compromisso do doente em monitorizar a sua saúde, sabendo que está a ser vigiado. O médico Mário Oliveira lembra que “um doente destes que tem estes periféricos em casa, que tem de se pesar regularmente, medir a tensão, pôr o relógio, sair, contar o número de passos, carregar no botão quando termina o exercício” acaba por “ter um papel ativo e fazer parte integrante do seu acompanhamento”.

Inicialmente, a equipa clínica estava convencida de que haveria uma determinada resistência por parte dos doentes quando lhes fosse dito que as consultas poderiam diminuir e que estariam a ser seguidos diariamente à distância. “Achei que os doentes estavam muito agarrados àquele conceito de vir em presença física ao médico muitas vezes, que fazia parte da nossa cultura”, admite. “E depois surpreendi-me.”

Após um questionário a vários utentes, a vasta maioria (90%) disse estar satisfeito com esta modalidade. Em parte, devido aos custos associados a cada ida ao hospital. “Porque os doentes também têm custos quando vêm ao hospital: ou o filho, a filha, o acompanhante não vai trabalhar para o trazer; tem de se deslocar de fora de Lisboa muitas vezes; tem de estacionar o carro.”

No entanto, deixa o alerta de que a monitorização à distância não substitui a consulta presencial. Apenas aumenta o tempo entre consultas. “Ao invés de virem de três em três ou de seis em seis meses, sou eu que acompanho o doente à distância e sei que ele está bem, eu posso marcar consultas anuais, porque no intervalo eu continuo a ver o doente.”

No Hospital de Santa Marta, o tempo real nos cuidados é o estar longe e o estar perto, o que corresponde também a menos internamentos, menos complicações e mais satisfação e qualidade de vida para o doente com insuficiência cardíaca.

Coração de Portugal é uma iniciativa do DN, JN e TSF com o apoio da Novartis e Medtronic

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