Lucília agarrou-se à vida, deixou a casa dos filhos e voltou à sua

Há mais de uma década com problemas cardíacos, Lucília Baltazar teve sucessivos internamentos. No ano passado, a insuficiência cardíaca agravou-se e deixou-a à beira da morte. Os filhos prepararam-se para se despedir, a médica acreditou que os esforços iam ser em vão, mas a D. Lucília, de 87 anos, contrariou-lhes as expectativas. Quem a vê hoje, a fazer agachamentos e a andar na passadeira, não diz pelo que passou.

Um a um, Lucília Baltazar viu os filhos deixarem a casa da família em Vendas de Galizes, uma aldeia no concelho de Oliveira do Hospital. A mais velha emigrou para França e os outros quatro rumaram à capital, para onde Lucília e o marido também viriam depois por causa do trabalho deste, como vendedor de batatas. “Custou-me muito vir para cá”, começa por contar, mas “agora já estou habituada.” Vive em Alcântara desde essa altura, mesmo sozinha desde a morte do marido em 2011.

E a única vez que deixou a sua casa foi no ano passado, quando teve de rodar entre a casa dos filhos, por causa da insuficiência cardíaca, que a deixou irreconhecível para a família.

Quem a vê hoje, a mexer-se com uma desenvoltura invulgar para os 87 anos feitos no dia 1 deste mês, quase a pular os dois degraus que separam o corredor da entrada da cozinha, e a exemplificar com rigor os agachamentos matinais, não imaginaria que esteve sem andar e acamada. Ela ri-se, tira a máscara quando nos sentamos a uma distância razoável e solta uma gargalhada sonora, como quem diz “já passou”. “Os médicos até se viraram para as minhas filhas e disseram: a vossa mãe está muito melhor”, continua, vaidosa com o feito.

Lucília Baltazar começou por ter um acidente vascular cerebral (AVC) em agosto de 2010. A família “tinha ido à terra”, quando ela se sentiu mal. Deu entrada no Hospital de Coimbra no dia 28, como provam os papéis de admissão hospitalar que Lurdes Gomes, uma das filhas, traz, organizados numa pasta com o historial clínico da mãe. “Foi uma coisa ligeira, felizmente ficou bem. Trouxe uma carta para ser acompanhada em Lisboa depois do internamento e pronto”, interrompe Ana Gomes, irmã de Lurdes, ambas de pé ao lado da mãe. Não se chegam muito por causa da pandemia de covid-19, que deixa Lucília numa posição mais vulnerável pela idade e pelas doenças que tem de coração, diabetes e colesterol.

Com insuficiência cardíaca – a doença em que o coração para momentaneamente – vive “há cerca de cinco anos”, recorda-lhe Ana. Foram os filhos e as netas mais próximas, dos 11 que tem, que começaram a estranhar o cansaço. “O meu irmão mais novo mora aqui a dois quilómetros e a minha mãe costumava vir sozinha de casa dele a pé. Nessa altura, quando eu lhe dizia para lá irmos, ela dava uns quantos passos e não aguentava mais. Começámos a achar que havia ali qualquer coisa na máquina”, explica Ana. Sentadas à mesa da cozinha, de onde se vê o sofá da sala, mas atentas à conversa, as netas Daniela, 21 anos, Maria Clara, 16, e Carolina, 15, anuem e pedem às tias para não deixarem de fora esta e aquela vez em que a avó não lhes parecia bem.

Ela ri-se, tira a máscara quando nos sentamos a uma distância razoável e solta uma gargalhada sonora, como quem diz “já passou”.

No ano passado, a doença agravou-se. Em março, “as pernas estavam muito inchadas”, lembra Lurdes. “Antes de ser hospitalizada, ela esteve em minha casa e houve uma noite em que eu pensei mesmo que ela não aguentava. Estava com tanta falta de ar, umas pernas que pareciam uns trambolhos”, continua. Durante esse fim de semana, depois de terem ido às urgências falar com a médica que a seguia, a doutora Isabel Luiz, especialista em medicina interna no Hospital de São José, Lucília Baltazar foi hospitalizada novamente.

 

Filhos e médica esperaram o pior

“A função cardíaca da D. Lucília foi-se deteriorando cada vez mais. Quando chegou ao hospital, há um ano, já tinha ascite abdominal, que é quando se acumulam líquidos nos pulmões, nas pernas, na barriga, e à medida que isso vai acontecendo as pessoas vão ficando com cada vez mais dificuldade em respirar”, explica, ao telefone, a médica Isabel Luiz, enquanto se vai recordando do episódio.

“A senhora já estava num estádio mesmo muito muito avançado; tanto que as duas filhas achavam que iria morrer. E eu também”, confessa. Lucília Baltazar ficou internada e acamada, mas a sua força de vontade não a deixou ficar mal. “Comecei a andar devagarinho, devagarinho e as enfermeiras diziam: já temos mulher”, conta a própria.

A especialista em medicina interna do São José propôs à família integrar Lucília num programa de oito semanas para testar um medicamento novo que serve para recuperar a função cardíaca e que estava a dar bons resultados noutros doentes. Lucília aceitou e foi sendo acompanhada no hospital de dia do São José, onde fazia análises e eletrocardiogramas regulares. Isabel Luiz admite que, na altura, não acreditou muito que a terapêutica funcionasse como uma solução, “porque a senhora já era muito idosa e com muitas comorbilidades associadas, mas na verdade correu muito bem”.

“O mais fantástico é ver o antes e o depois, parece irreal, parece milagre”, aponta a médica, satisfeita com a doente. “A D. Lucília é um exemplo fantástico. Tinha múltiplos internamentos, como é frequente nas pessoas com insuficiência cardíaca, mas agora está estabilizada”.

Isabel Luiz continua a seguir Lucília Baltazar em consultas regulares, e já durante a pandemia o fez através de videochamada, para garantir que está tudo a correr bem, que a medicação não precisa de ser ajustada ou que os exames estão todos em dia.

“O mais fantástico é ver o antes e o depois, parece irreal, parece milagre”, aponta a médica, satisfeita com a doente. “A D. Lucília é um exemplo fantástico.

Recuperar a independência

Lucília é uma boa doente e colabora. Aprendeu a fazer ginástica em casa da filha Ana, ao acompanhar a filha e o genro na atividade física matinal, e desde então todos os dias de manhã repete os exercícios. Em casa de Ana até fazia passadeira. “É extraordinário como uma senhora daquela idade passa de estar à abeira da morte para andar na passadeira todos os dias”, realça a médica.

Entretanto, voltou para sua casa, onde não lhe custa estar sozinha, diz. “Ando na minha vida. “Em casa das minhas filhas querem que eu coma muito e eu não posso comer muito”, conta e arranca um riso geral. “À noite, só como sopa e uma gelatina e às vezes fruta. Em casa delas só me diziam: ó mãe vá comer, vá lanchar, vá isto, vá aquilo. Em minha casa faço o que quero”, assume.

E tem sempre atividades. Desde que se levanta até à hora de almoço, está “sempre a trabalhar”. “Lavo-me, lavo a casa de banho, faço a cama, varro a casa, arrumo a roupa, faço o almoço. Depois, umas vezes sento-me no sofá a ver televisão, outras vezes deito-me em cima da cama e outras vou ali para fora ler umas revistas que elas me trazem”, relata.

As filhas e netas confirmam: “Nunca para quieta.” Ana acrescenta: “Trouxe-lhe dois livros que a minha filha encontrou lá em casa sobre a Jacinta e o Francisco [os pastorinhos], começou a ler, entusiasmou-se tanto que ficou dois dias com um torcicolo por causa da postura a ler durante tanto tempo. Ela há muito tempo que não estava tão bem, tão autónoma”, diz a filha.

Lucília Baltazar é uma mulher de força e de coragem. Ao pé de nós levanta-se do sofá com vontade de mostrar que é verdade e garante: “Eu estou ótima.”

Cuidar de um outro coração

Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.