Ramiro Domingues tirou férias pela primeira vez neste verão, aos 63 anos. Foi com a família para o Algarve, conta a sorrir ao relembrar os momentos com uma das netas à beira-mar e o tempo que teve para dedicar aos seus. Há muito que não fazia uma pausa no vai e vem do trabalho. É o administrador de uma transportadora nacional e habituou-se a fazer quilómetros para resolver um problema ou para se encontrar com clientes. Fez diretas ao volante de Lisboa para Madrid, comia fora de horas e onde estivesse, sem grandes cuidados com a alimentação. Tinha um ritmo de trabalho frenético, até que o coração, no ano passado, o obrigou a abrandar.
Ia precisamente a caminho da capital espanhola com o filho mais novo, que entretanto se começou a preparar para assumir os comandos da empresa, quando . pararam em Montemor-o-Novo e sentiu um arrepio. Depois, uma má disposição, que o fez redirecionar o caminho e voltar para casa. Já em casa começaram as dores nas costas, que atribuiu de imediato aos milhares de quilómetros a conduzir. Andou nisto quinze dias. Até que uma manhã se levantou para ir tomar banho e “já não tinha forças para sair da banheira”. A mulher ajudou-o a vestir-se e foram para as urgências do Hospital da Luz, em Cascais.
Faltavam dois dias para terminar o ano de 2019 e foi ali que Ramiro Domingues entrou em 2020, recorda com a voz embargada, sentado à mesa da sala de reuniões da sede da empresa que construiu, em Mem Martins, Sintra, já depois do horário de expediente, a uma sexta-feira, em que ele mais uma vez foi o último a sair e a apagar a luz.
No hospital, os médicos diagnosticaram-lhe um edema pulmonar, tinha a artéria pulmonar obstruída e não faltaria muito para ter um enfarte. “Chegou ao hospital um dia ou dois antes de ter um enfarte”, analisa o médico de medicina interna do Hospital dos Covões, em Coimbra, David Sousa – a olhar para o historial clínico de Ramiro filho. Os dois – médico e paciente – conheceram-se através de Ramiro pai, hoje com 87 anos, e com o mesmo nome que deu ao filho. David Sousa é médico de Ramiro pai, que também sofre de insuficiência cardíaca. Ao telefone, David Sousa continua a percorrer a ficha do filho: “Pode não ter chegado a ter o enfarte, mas já tinha as consequências todas. Deixou mesmo chegar-se até à última, antes de procurar ajuda médica”, explica. O médico sabe o historial de Ramiro filho por este, um dia, numa consulta com o pai, lhe ter pedido para o observar também.
Assim fez, um dia foi a Coimbra mostrar os seus exames e veio de lá com a cartilha feita. “Excesso de trabalho, maus hábitos alimentares, tudo”, ouviu o médico dizer. Ramiro hoje sabe disso. Na altura, não. “Sentia-me fantasticamente bem”, diz. Só se apercebeu da diferença na sala de operações no Hospital da Luz em Cascais. “O médico fez-me um buraquinho no pulso e em menos de cinco minutos eu olhei para o ecrã [que media a atividade cardíaca] e vi a diferença. Depois, meteram-me um stent [um tubo colocado no interior de uma artéria para prevenir que esta fique obstruída] e comecei a respirar melhor”.
“Hoje, do coração, estou ótimo”, garante. Mas do susto não se livrou, até porque Ramiro tem uma série de outras doenças – como é comum nos doentes com insuficiência cardíaca. Tem o colesterol e a tensão altos, diabetes e, neste ano, chegou mesmo a perder o andar por causa de uma doença viral, um herpes, que encontrou um sistema imunitário já enfraquecido.
As histórias de Ramiro Domingos filho e de Ramiro Domingos pai repetem-se. “Eles tiveram os dois um percurso de vida semelhante”, refere o médico David Sousa, mas no caso deles a insuficiência cardíaca não é uma questão hereditária. “São ambos empresários, dedicavam-se muito ao trabalho e pouco tempo à sua própria saúde. Não deram a atenção devida aos sinais que o corpo lhes estava a dar”, sublinha o médico do Hospital dos Covões. Ou seja, os problemas cardíacos que ambos apresentam não são uma herança genética, mas uma herança de feitio, de estilos de vida desregrados. “Aquilo que podemos fazer de melhor para prevenir as doenças cardíacas – seja a insuficiência cardíaca seja outra – resume-se a ter um estilo de vida saudável: dormir bem e a horas, comer bem e a horas e praticar regularmente exercício físico”, aponta o médico de medicina interna de Coimbra. “Ambos falhavam em tudo isto.”
David Sousa conheceu Ramiro Domingos pai em setembro do ano passado, quando este teve um agravamento do quadro de insuficiência cardíaca e no lar onde vive, em Coimbra, sugeriram que fosse observado pelo médico. “Chegou a uma fase em que não conseguia dar dois passos sem ter falta de ar”, explica Ramiro filho ao recordar a situação do pai, e longe de imaginar que meses mais tarde lhe aconteceria a ele.
Ramiro pai foi observado pelo médico e acabou por ficar internado no Hospital dos Covões, alteraram-lhe a medicação e repetiram-lhe o cateterismo (quando é introduzido um tubo fino nas artérias do braço ou da perna até ao coração com o objetivo de examinar o interior dos vasos sanguíneos) e substituíram-lhe o stent. Ramiro pai já tinha tido um enfarte em 2004 e desde essa altura que ficou com uma disfunção nas válvulas cardíacas, à qual devia ter dado mais atenção, diz o médico. “Ele achava que o cansaço era normal, era da idade. Só depois de ter estado internado é que percebeu que afinal não era.”
Desde essa altura que é seguido na consulta de David Sousa, não voltando a ter necessidade de outra hospitalização. “Está cheio de força. Anda lá no lar para trás e para a frente”, descreve Ramiro filho, que hoje não vê tanto o pai devido à pandemia.
Ramiro Domingos filho admite que não foram poucas as vezes que o alertaram para mudar de vida, a família, os colegas, os clientes que se sentam à mesma mesa onde nos encontramos. “Eu percebia, mas não percebia. Foi isto que me fez mudar”, confessa. “Tudo é destino”, e Ramiro acredita que o seu destino era “não ter ficado por ali”. Por isso, chegou a tempo. “Passamos a ver o mundo de outra maneira.”
Até ao dia 29 de dezembro de 2019 não pensava em férias, o trabalho era uma dependência. Tinha 3 dias quando a mãe o começou a levar para a mercearia de que os pais eram donos, em Coimbra, a sua cidade natal. A mercearia “era pequenina, mas era uma máquina”, recorda. Foi ali que aprendeu a fazer contas à mão, e ainda hoje é assim que as faz. Nos primeiros anos de vida moravam num andar por cima da loja, depois o pai começou a construir uma casa para eles que viria também a ser um café para a família explorar. Mesmo assim, Ramiro arranjava sempre negócios colaterais. Aos 16 anos, quando voltava do liceu D. Duarte, onde estudava, e antes de ir para casa, sentava-se “à beira da estrada a vender pipos para a aguardente”.
Foi como começar a desfiar um novelo. Depois, vieram mais e mais ideias para “fazer dinheiro”. Foi a Espinho comprar móveis de bambu para vender, mais tarde, já casado, ia com a mulher a Espanha ver o que podia comprar lá que não encontrasse cá. De negócio em negócio, criou uma empresa que tem cerca de 200 trabalhadores, mas que ele entende que, por causa da sua saúde, já não pode gerir sozinho. Tem três filhas e um filho; está a passar a pasta ao último, o mais novo com 24 anos, a quem deixa muitos conselhos de gestão, mas o mais valioso é para não se descuidar com a sua saúde.
Coração de Portugal é uma iniciativa do DN, JN e TSF com o apoio da Novartis e Medtronic
Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.