Quando Américo Gonçalves se senta ao piano, a sala mergulha no silêncio. Fecha os olhos, concentra-se e a música sai-lhe pelos dedos. Só acorda com as palmas de quem o estava a ouvir. Num raro momento de regresso ao passado, num dos seus dois restaurantes, em São João do Estoril, voltou a tocar. No final, olha para o instrumento e explica: “Quanto mais imaginação tiveres mais sons consegues ouvir do piano.” Ele, diz, “era capaz de ouvir uma orquestra inteira”.
O piano foi uma grande parte da sua vida entre os 20 e os 60 anos. Até aqui tocou de tudo um pouco e andou “por aí, como um saltimbanco, a tocar em tudo quanto é sítio”, conta. Fez espetáculos em muitos países, tantos que não é tarefa fácil lembrar-se de todos. Recorda-se de alguns: França, Luxemburgo, Alemanha, Itália, Canadá.
Começou a tocar aos 12 anos, porque tinha os dedos muito pequenos para a viola, instrumento que estava a aprender desde os 7. O pai comprou-lhe um piano e Américo Gonçalves diz: “Nunca mais o larguei. Até ter o enfarte.” Hoje, com 66 anos, ainda toca, porque tem sempre o piano-órgão ali à mão, o que é uma escapatória fácil, mas “já não é mesma coisa”. “Não aguento aquelas oito horas de estudo, mais quatro horas a tocar”, admite.
“As exigências físicas de um profissional são muito elevadas, as horas que não se dormem, os ensaios. É pesado. O tipo de músico que eu era – que tocava com toda a gente, em tudo o que era lado – era uma exigência física muito grande.”
Desde dezembro de 2013 que a energia não é a mesma. Começou por se sentir maldisposto, sentir uma ou outra tontura, que desvalorizou. Até esta data não ia ao médico, nunca tinha tido um episódio de doença que não se curasse com um antipirético ou um analgésico, nem sequer conhecia o seu médico de família. “Até que cheguei a casa um dia e vomitei. Fui para cama, deitei-me de lado, estava a dar um jogo de futebol na televisão. Quando acordei estava no hospital. A primeira vez que vi médicos na minha vida foi já no Hospital de Santa Cruz. Tinham-me feito dois desentupimentos de veias, dois bypasses, e tinha de ser operado”, conta sentado a uma mesa do seu restaurante. Esteve um mês internado em Santa Cruz, por causa de um enfarte.
Américo sabe onde estava antes e onde acordou depois. Mas os espaços em branco na sua memória são preenchidos por Vera Gonçalves, 58 anos, a sua mulher, com quem é casado há 30 anos. Esta recorda-se de todos os acontecimentos daquela noite, passo por passo. Já lhe andava a estranhar alguns comportamentos nessa semana, como o levantar-se durante a noite e andar de um lado para o outro ou a cor do rosto, mais amarelada. Naquela noite, para o jantar, tinha feito esparguete à carbonara, “porque ele gostava muito” e levou-lhe o prato à cama. Vera e as filhas jantavam na cozinha, quando ouviram “uma espécie de uivo, um som estranho”. Pensaram que Américo estava a brincar, mas, quando foram ao quarto, encontraram-no “virado para baixo e a comida estava em cima da cama”.
“Eu nunca tinha visto uma pessoa a ter um enfarte, mas disse logo às minhas filhas: o vosso pai está a ter um enfarte”, lembra Vera, enquanto enxuga as lágrimas que não conseguiu conter quando começou a falar do episódio que mudou a vida da família. “Pedi-lhes para elas irem chamar os vizinhos. Elas foram. Há um vizinho que trabalha na PSP e ligou para o 112. Foram-nos dando instruções do outro lado da linha, disseram: deite-o no chão; tire-lhe a roupa toda e vá fazendo uma massagem no peito; se ele tiver alguma prótese, tire-lha; faça-lhe respiração boca a boca”, enumera Vera.
A ambulância chegou 15 minutos após o início do telefonema, tiveram de sair do quarto para a médica do INEM analisar Américo e não esperaram muito pelo veredicto: “Este senhor tem de ir direto para o Hospital de Santa Cruz.” No hospital, foi logo para a sala de cirurgia. Vera só recebeu notícias no fim da operação, que ainda consegue reproduzir: “O caso do seu marido é muito grave. Tem três artérias do miocárdio obstruídas, duas delas estão completamente deterioradas. Na situação em que estão, ele já deve ter tido dois enfartes”, disse-lhe a equipa médica.
E estas palavras fizeram soar campainhas na cabeça de Vera Gonçalves, que se lembrou rapidamente de dois momentos para os quais não tinha explicação: um em casa e outro quando estavam a tocar numa festa e Américo perdeu a noção de onde estavam momentaneamente.
Vera era cantora e os dois costumavam trabalhar juntos, foi aliás a atuar que se conheceram. Ela veio do Brasil, onde nasceu, para visitar Lisboa com uns amigos. Uma noite foram a um bar onde Américo estava a tocar. “Ela apareceu e disse que queria cantar. Eu disse: está bem, vá lá cantar, o que é que a menina canta?”. Vera sugeriu a canção brasileira Negue. Ele sabia-a de cor. Américo simplifica o final: “Cantou até hoje. Casámos e ela veio para cá [Portugal].”
Desde então que se acompanham mutuamente. Em todo o período de internamento de Américo, Vera esteve na enfermaria das 08.00 às 20.00, enquanto esperavam por uma segunda cirurgia. A derradeira operação aconteceu em janeiro de 2014 e “correu muito bem”, recorda o casal. Depois, apesar da recuperação lenta, Américo foi retomando a sua vida a pouco e pouco nos aspetos em que podia. O piano teve de ficar para segundo plano. Por isso, abriram dois cafés em São João do Estoril, onde ambos trabalham agora. Voltar a cantar e a tocar, no entanto, não faz parte dos projetos. “É preciso alma”, explica Vera, e eles foram-na perdendo nos tropeções que deram. Não só em 2013, mas também mais tarde com a morte da filha mais velha, que tinha 23 anos.
“O meu ritmo de vida era muito tranquilo”, refere Américo Gonçalves. “Era pianista, mas se me convidavam para ir a uma festa eu não ia, não tinha paciência. Também estudava em casa. O meu único problema grave era o tabaco.” Fumava desde os 19 anos, primeiro cigarros, depois cachimbo, “porque gastava muito dinheiro em tabaco”, e os médicos acreditam que essa poderá ter sido a sua “desgraça”.
Hoje vive com um CTR, um dispositivo de ressincronização cardíaca, implantado no peito com o objetivo de ajudar o coração a bater, quando o órgão está mais fraco. É o segundo aparelho do género que tem. No ano passado, teve também de fazer duas ablações, uma operação para eliminar as células que provocam as arritmias, mas não deixa de ficar pasmado “com a forma como a medicina evoluiu”. E para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) só tem elogios: “O nosso SNS é um espetáculo. Temos de ter muita confiança nele”, sublinha.
Continua a ser acompanhado no Hospital de Santa Cruz e também no Hospital de Cascais, a frequência das visitas depende da evolução mais ou menos positiva da sua insuficiência cardíaca. “Há períodos mais críticos, em que as consultas têm de ser quase semanais, mas agora o Américo está a vir cá quatro a cinco vezes por ano, embora tenha sempre a porta aberta”, diz Gonçalo Proença, cardiologista do segundo hospital e médico de Américo.
“As pessoas com insuficiência cardíaca [IC] são pessoas com um risco muito acrescido. A IC tem uma taxa de mortalidade muito elevada, que chega a quase 10%, portanto, esta é uma população de doentes que precisa de muito rigor, de uma terapêutica otimizada, de um médico que esteja por perto. Os doentes têm de ser educados pelos seus médicos e pelas equipas de IC no sentido de saberem o que comer, o que beber em termos de volume de líquidos, saber sinais precoces de instabilização e que medidas tomar para evitar essa instabilização”, explica o médico.
A pensar nisto, o especialista que trabalha no Hospital de Cascais há dez anos – depois de ter feito um percurso essencialmente ligado ao apoio dos doentes com IC nos cuidados intensivos – decidiu, “com a ajuda dos colegas”, lutar por uma clínica dedicada a estes doentes naquela unidade, a sua “filha”, como descreve.
A clínica, que foi construída a pensar num acompanhamento mais próximo dos doentes como Américo Gonçalves, está a funcionar há dois anos, já seguem “centenas de doentes” e “nota-se a diferença em alguns indicadores que são passíveis de quantificar”, aponta o fundador e coordenador da unidade. Tais como “uma redução significativa da mortalidade. Os nossos doentes exibem melhorias nas classes funcionais e em escalas de autocuidados. Temos muito para a andar, mas já temos resultados para mostrar e temos muito orgulho nisso”, diz Gonçalo Proença, que apresenta Américo Gonçalves como um exemplo de sucesso do projeto. Uma vez que este aprendeu a viver com a doença, a fazer uma vida o mais saudável possível e a estar atento aos sinais.
Há um antes e um depois do enfarte para Américo Gonçalves. A vida não regressou ao que era, viver com insuficiência cardíaca deixa-o mais cansado e obriga-o a ser muito regrado no dia-a-dia. A ele e à família, que o acompanha sempre. Mas Américo prefere ver o lado positivo da situação. “Até esta data já ganhei sete anos de vida e depois do tratamento que fiz terei mais anos até ao próximo tratamento.”
Raramente um diagnóstico de Insuficiência Cardíaca (IC) afeta apenas quem sofre da doença. Cônjuge, família e amigos próximos são muitas vezes o apoio e principal fonte de cuidados em casa, abraçando novos desafios e lidando com as suas próprias emoções enquanto tentam ajudar da melhor forma quem deles precisa.