A insuficiência cardíaca (IC) “representa um problema crescente de saúde pública”, admitiu o secretário de Estado adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales, nesta quarta-feira, na abertura do segundo dia do Ciclo de Conferências sobre Insuficiência Cardíaca – Uma Estratégia para Portugal.
Num vídeo gravado horas antes do debate, por razões de última hora não lhe permitirem estar presente em direto, o governante deixou a garantia de que “o governo tem consciência do muito que ainda há a fazer pela IC”, mostrando abertura para refletir sobre as propostas reunidas no documento “Consenso Estratégico para a Insuficiência Cardíaca em Portugal”, apresentado no primeiro dia deste ciclo de conferências – que a Global Media Group está a levar a cabo com o apoio da Novartis e da Medtronic entre as 18.30 e as 20.00 nos sites de DN, JN e TSF – e que resulta do trabalho e da discussão de muitos especialistas da área.
“Temos enormes desafios em matéria de IC, que deverão merecer a nossa melhor atenção”, começou por admitir o governante, nomeando, depois, a importância de assegurar “um envelhecimento mais ativo e digno através de políticas públicas que coloquem todos os cidadãos no centro”, uma preocupação que nos leva à promoção de “estilos de vida mais saudáveis, através de uma alimentação equilibrada e de exercício físico”. No fundo, uma aposta na “prevenção da doença, diagnóstico precoce e depois na reabilitação”.
“Sabemos bem que a IC é uma doença crónica em que os vários estádios de doença exigem diferentes níveis de cuidados, garantindo a progressão do tratamento ao longo da progressão da doença”, continuou António Lacerda Sales. Palavras que vão ao encontro dos anseios do grupo de especialistas que, desde julho do ano passado, se reuniu para criar um documento que aponta as falhas do sistema, no que diz respeito à doença em que o coração para temporariamente, e as respetivas soluções.
Mas para os especialistas que nele colaboraram, e como foi referido logo no primeiro dia das conferências, o maior receio é que estas ideias se fiquem pelas gavetas do ministério, em vez de serem postas em prática.
Melhorar a qualidade de vida dos doentes é um objetivo
Durante o debate, a necessidade de articulação entre os diferentes níveis de cuidados de saúde viria a ser amplamente abordada, tal como a importância de aumentar o financiamento para construir equipas especializadas, ter novos equipamentos e fazer chegar ao doente a informação de que este precisa para colaborar com os especialistas. Sempre com um objetivo: melhorar a qualidade de vida das pessoas que sofrem com IC, se não se puder evitar que sofram desta patologia.
Isto mesmo parece ser unânime nas respostas às perguntas do jornalista e moderador Paulo Baldaia feitas aos oradores deste segundo dia, nomeadamente ao presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Rui Nogueira, ao coordenador do Grupo de Estudo de Insuficiência Cardíaca (GEIC) da Sociedade Portuguesa de Cardiologia, José Silva Cardoso, ao cardiologista e especialista em arritmologia, pacing e eletrofisiologia Pedro Marques, à coordenadora do Núcleo de Estudos de Insuficiência Cardíaca da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Joana Pimenta, e ao vice-presidente da Agência de Investigação Clínica e Inovação, Victor Herdeiro.
“É frequente o diagnóstico [dos doentes com IC] só ser feito durante o primeiro internamento”, apontou Pedro Marques, o primeiro a usar da palavra, admitindo assim que se a articulação entre os cuidados de saúde primários e os hospitalares estivesse bem oleada, os doentes só teriam de ser atendidos no hospital em situações de agudização da doença, ficando, segundo o especialista, o diagnóstico desde logo feito nos centros de saúde.
O presidente da APMGF não pôde deixar de concordar, mas lembrou que falta “o acesso a um exame essencial para o diagnóstico inicial destes doentes”.
De acordo com Rui Nogueira, se o governo comparticipasse este exame, no valor de aproximadamente 25 euros, e que não dispensa a realização de um eletrocardiograma para confirmar o diagnóstico, os médicos de família poderiam assumir com mais eficácia o tratamento dos doentes com IC numa fase preliminar da doença, trabalhando em articulação, depois, com internistas, cardiologistas e até intensivistas, mediante situações mais graves.
“Todos juntos não somos de mais para tomar conta destes doentes”, sintetiza Joana Pimenta, a coordenadora do Núcleo de Estudos de Insuficiência Cardíaca da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, que também acredita “no potencial da medicina geral e familiar”.
“O que eu creio é que nos falta organização para fazer um acompanhamento fluido destes doentes”, sublinha.
“Passa muito por nos organizarmos em torno da patologia e não da especialidade médica”, continua a ideia Victor Herdeiro, presidente da Agência de Investigação Clínica e Inovação.
Investir na prevenção
Para além de uma articulação entre os diferentes tipos de especialistas, os médicos vão mais longe e querem estender esta missão também aos doentes. Um dos objetivos estabelecidos no documento “Consenso Estratégico para a Insuficiência Cardíaca em Portugal” é precisamente “ensinar o doente a fazer autovigilância”, tornando-o uma peça fundamental do seu próprio tratamento. Para isto, há que investir na formação dos pacientes e na divulgação da doença na sociedade.
A prevenção adquire aqui um papel fundamental e o ideal será evitar mesmo o aparecimento de mais casos de insuficiência cardíaca, que de acordo com as estimativas oficiais afeta 400 mil portugueses e poderá atingir meio milhão em 2060. “A população deve ser motivada para um estilo de vida saudável. O pináculo da medicina é a medicina preventiva e não a medicina curativa”, diz José Silva Cardoso, o coordenador do Grupo de Estudo de Insuficiência Cardíaca da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. “É melhor fazer a profilaxia do que o tratamento. Temos de evitar que o mal se instale.”
O caminho, aponta o especialista, passa em primeiro lugar por adquirir melhores hábitos de vida, como fazer uma alimentação cuidada, praticar exercício físico e evitar o sedentarismo.
É urgente mais investimento
Uma coisa é certa, volta a intervir Rui Nogueira, para que todas estas medidas sejam postas em prática será preciso investimento, especialmente nos cuidados de saúde primários. “Nos hospitais até tem havido financiamento”, acredita, mas “nos centros de saúde desde 2010 que começámos a decair. Estamos a viver com o mesmo dinheiro que há dez anos”. E é perentório: “Os médicos de família estão esgotados. Vai ser preciso fazer alguma coisa já nos próximos meses, para não dizer nas próximas semanas ou dias.”
José Silva Cardoso diz mesmo que “sem financiamento até pode haver conhecimento, mas não há forma de pôr esse conhecimento em ação”. Mas todos concordam que é preciso estabelecer objetivos e metas, que se traduzam em resultados, que justifiquem o financiamento.
O arritmologista Pedro Marques argumentou até que “não vale a pena chorar por dinheiro”, já que “é preciso dinheiro para tudo, desde a agricultura à saúde”, o importante é mesmo apostar na definição de metas e de resultados para se distribuir o dinheiro.
Victor Herdeiro, que foi administrador de uma unidade de saúde familiar de Matosinhos, e é agora vice presidente da Agência de Investigação Clínica e Inovação, admitiu também que o financiamento dado até agora à IC é insuficiente. “Há um subfinanciamento”, sublinha, remetendo para o documento de consenso em que esta questão está esplanada.
A articulação de cuidados, a existência de mais hospitais de dia para a IC, mais pessoal especializado em cuidados de cardiologia, marcaram este segundo dia de debates. Amanhã a discussão será sobre IC – Um Olhar Profissional e Sistémico.