É uma doença que, normalmente, é detetada já e situação de urgência hospitalar. É uma doença que mata. Mas é, simultaneamente uma doença que, diagnosticada precocemente e devidamente monitorizada, pode acarretar qualidade (e anos) de vida ao paciente.
Não vivemos sem ele, mas não lhe damos o devido valor. Precisamos do coração para bombar oxigénio e sangue nas nossas veias. No entanto raramente prestamos atenção quando ele dá os primeiros indícios de que há um problema. Ou sequer temos o hábito de fazer exames de rotina com regularidade. À conta disso estima-se que 400 mil pessoas sofram de insuficiência cardíaca em Portugal.
Só para se ter uma ideia, “há mais doentes a morrer de insuficiência cardíaca do que das principais doenças oncológicas”, afirma António Silva Cardoso, coordenador IC da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Com uma agravante. “É uma doença crónica, progressiva e que tem uma mortalidade muito elevada”.
Se mesmo assim não está convencido, pense o seguinte. Se o coração não estiver a funcionar a 100% todos os restantes órgãos sofrem. Razão mais do que suficiente para lhe começarmos a dar mais atenção, não?
Por isso os exames de rotina, mesmo sem qualquer tipo de sintoma, são tão importantes. Veja-se o caso de Susana Gabriel, arqueóloga, que nunca teve qualquer tipo de sintoma. Aos 35 anos, num exame de rotina, levado a cabo pela sua médica, que por ser uma nova paciente foi mais minuciosa – diga-se fez exames que, um médico de família, com consultas regulares, talvez não fizesse. Ao fazer uma “simples” auscultação apercebeu-se que o coração de Susana batia a duas velocidades. Diagnóstico: insuficiência cardíaca, uma doença que só se resolve com um transplante de coração. À parte disso o tratamento possível passa pela utilização de o CRTD, um equipamento (semelhante a um telemóvel) que recolhe os dados do paciente e os envia para o cardiologista. Ou seja, é algo que tem de estar sempre “connosco”. Fora isso, como refere Susana, é tomar a medicação a horas e tentar não stressar muito.
Gonçalo Proença, cardiologista do Hospital de Cascais, por outro lado, realça a importância de estes doentes terem um acesso privilegiado aos profissionais que cuidam deles. Para que sempre que tiverem uma dúvida ou sofram qualquer tipo de sintoma possam ser ajudados. Um papel que, para Américo Gonçalves, empresário na restauração e que um ataque de miocárdio deixou entre a vida e morte, é o de conselheiros. Os primeiros conselheiros. O empresário dá o seu caso como um exemplo do que não se deve fazer, dizendo que se tivesse prestado atenção e se tivesse ido ao médico com regularidade provavelmente não teria tido o enfarte. Hoje vive condicionado pela medicação e qualquer coisinha o cansa. Se antes conseguia tocar piano por horas e horas hoje bastam poucos minutos para ter de desistir.
Teleconsultas permitem um maior controlo da doença
A tecnologia trouxe mais autonomia aos doentes. Hoje os dispositivos médicos, como o pacemaker, são capazes de monitorizar os sinais vitais dos pacientes e alertar em caso de anomalia. Sem esquecer que armazenam e transmitem dados fundamentais para que os médicos possam avaliar a evolução dos pacientes.
Veja-se o caso de Armando Magalhães, que revela que já aconteceu estar em casa e receber um telefonema a pedir para ir ao seu médico porque precisa de ser observado. Uma monitorização que aufere uma tranquilidade que antes não se tinha. E segurança. Segurança que, caso seja necessário, são atendidos.
Victor Sanfins, cardiologista e presidente da APAPE explica que estes dispositivos tem a capacidade de tratar as arritmias que causam morte súbita, mas, também, têm a possibilidade de fazer o registo permanente de um sem número de fatores que ajudam os médicos a ter uma ideia de como está a evoluir a insuficiência cardíaca. Por isso mesmo são – e é assim que devem de ser encarados – auxiliares preciosos na melhoria da qualidade de vida dos pacientes. Esta monitorização, sete dias por semana, 365 dias por ano, pode, segundo estudos, levar a reduções na ordem dos 25% da mortalidade anual neste grupo de doentes.
Mas hoje a tecnologia vai ainda mais longe. Veja-se o caso do Hospital da Luz que faz consultas à distância desde 2016. Começaram com cerca de 15 especialidades hoje já vão em 50, tinham cerca de 60 médicos envolvidos, e hoje o número ultrapassa os 700. O que ajudou muito, especialmente em época de pandemia. Porque, como refere Daniel Ferreira, diretor do Centro Clínico Digital, é preferível uma consulta à distância que, por medo, estarem ausentes durante um ano, e, com isso, “estarem mito descompensados”, o que pode levar a internamentos. E isso não pode acontecer porque, pela tipologia da doença os doentes de insuficiência cardíaca precisam de mais consultas do que os outros, refere Daniel Ferreira. Mais consultas, mesmo que à distância, permite ter um melhor (e maior) controlo da doença e, assim, garantir uma melhor qualidade de vida dos pacientes. No entanto, ainda falta, refere Joana Pimenta, medica interna no Centro Hospitalar Gaia/Espinho, perceber a forma como estamos a usar a tecnologia no dia a dia do doente.
Nesse apeto a pandemia trouxe algo positivo dado que, como constata Victor Herdeiro, presidente da Administração Central Sistema de Saúde, a telemonitorização foi muito acelerada com a pandemia. E melhores (e atualizados) dados permitem uma tomada de decisão (por parte dos médicos) mais assertiva.
Diagnóstico, quanto mais cedo melhor
O grande problema desta doença, associada à sua gravidade, é o facto de, na maioria das vezes, ser detetada já tardiamente. Não há um diagnóstico precoce, refere Luís Filipe Pereira, da Associação do Apoio ao Doente com Insuficiência Cardíaca. “Normalmente este é feito em situação de urgência nos hospitais, quando deveria ser feito nos cuidados primários”, acrescenta.
Para Luís Filipe Pereira as pessoas deveriam ser informadas. Da doença, dos sintomas, dos riscos, das consequências. E logo desde cedo, por exemplo, desde os “bancos da escola”. Porque “há uma responsabilidade individual em relação à manutenção da nossa própria saúde”. E esta vem com a informação.
Por outro lado, é uma doença que, para ser tratada precisa de um verdadeiro trabalho de equipa, com profissionais de múltiplas especialidades da medicina. “há três especialidades médicas que são essenciais na insuficiência cardíaca”, afirma António Silva Cardoso: cardiologia, medicina interna, e a medicina geral e familiar. Para as cerca de 400 mil pessoas que se estima que sofram desta doença a medica familiar é a mais importante porque tudo começa por aí. Ou deveria. Como afirma Nuno Jacinto, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familar, é a porta de entrada do doente no Sistema Nacional de Saúde. “Cabe ao médico de família fazer o diagnóstico precoce, estar atento aos sintomas desta doença e, com isso começar a tratar o doente o mais rapidamente possível”.
Só desta forma, com diagnóstico precoce, tratamento atempado e constante será possível contrariar a realidade assustadora dos números, que refere que 50% dos doentes morrem cinco anos após o diagnóstico. E, acima de tudo, lembra Nuno Jacinto, mais do que apenas tratar a doença, assegurar que o doente tem qualidade de vida.
Por outro lado, António Silva Cardoso, afirma que após o diagnóstico não basta começar o tratamento, há que tentar perceber o que causou a insuficiência cardíaca. É aqui que entra a cardiologia. Hoje os exames permitem saber com exatidão (pelo menos na maioria das vezes) a causa exata da insuficiência cardíaca o que, depois, permite a criação de um tratamento personalizado.
Porque quando não há controlo a probabilidade de se concretizar uma situação aguda, diga-se internamento, sobe exponencialmente. A prova está em que a insuficiência cardíaca é responsável por uma hospitalização a cada 28 minutos e uma morte a cada 3,8 horas.
A melhor forma de contrariar este cenário, refere Joana Pimenta, é conseguir tratar o doente mais cedo. O que leva a médica a afirmar que era fundamental ter uma rede de cuidados de insuficiência cardíaca a nível nacional, com vários patamares distintos. “Porque estes doentes precisam tanto de cuidados de proximidade como, algumas vezes, de cuidados especializados”.
E, aos médicos, há que adicionar os enfermeiros, os cuidadores… “o ideal é criar uma equipa multidisciplinar e integrada”, afirma, António Silva Cardoso. Uma única equipa que dialoga de forma permanente através de meios eletrónicos ou de forma presencial. Já Luís Filipe Macedo, do Programa Nacional de Doenças Cérebro-Cardiovasculares, aponta que deveria haver uma espécie de via verde da insuficiência cardíaca, que facilitasse a transição entre os cuidados de saúde primários e o ambiente hospitalar.
É impossível viver com insuficiência cardíaca? Não. Mas isso implica diagnóstico precoce, uma boa relação entre paciente e cardiologista, o empoderamento do paciente, diga-se ele ter conhecimentos suficientes que lhe permitam ter alguma autonomia, conhecer os sinais precoces de instabilização da doença, para poderem atuar em conformidade e tudo isto num processo contínuo.